quarta-feira, 2 de setembro de 2009

"Bilhete de Loteria"

O tio do primo de um amigo meu ganhou na loteria uns anos atrás. A princípio, todos ficaram extremamente contentes com os milhões que subitamente entraram nas contas do senhor de renda média. Uma verdadeira "dádiva de Deus".

Semana passada, meu amigo me ligou, entristecido. Relatou-me que a família havia passado por uma grande cizânia, seguida de inúmeras brigas miúdas, com cada um querendo abocanhar parte dos recursos de Deus. A loteria gerou, paradoxalmente, uma piora do bem-estar de todos.....

A notícia, apesar de triste, não deveria surpreender um economista. Afinal de contas, há uma vasta literatura sobre a chamada "Maldição dos Recursos Humanos", relatando como a descoberta de algum recurso natural importante pode acabar piorando a situação de um país.

Há dois canais de transmissão ligando recursos naturais à piora no desenvolvimento econômico ao longo do tempo. O primeiro, e a meu ver menos importante, é o do câmbio: mais petróleo fluindo do chão gera expressivo aumento da entrada de dólares no país, apreciação cambial e, consequentemente, perda de competitividade no setor de bens comercializáveis. Como esse setor apresenta em média maiores ganhos de produtividade ao longo do tempo que o de não comercializáveis, o crescimento de LP reduz-se. Esse problema pode ser parcialmente equacionado com a formação de fundos públicos destinados à compra de moeda forte.

O segundo canal tem a ver com a economia política do gerenciamento dos recursos naturais. Em países com instituições político-econômicas de má qualidade, a descoberta dos recursos naturais gera conflitos domésticos, muitas vezes armados, que destroem o tecido social e a capacidade de formulação de consensos, dado que cada grupo da sociedade passa a investir pesadamente em apropriar-se da recém descoberta dádiva de Deus a qualquer custo. Consequentemente, a política e a política econômica deterioram e o resultado final é estagnação da economia, impregnada por ávidos rent-seekers. Além disso, ocorre também um conflito geracional quando se descobre uma riqueza enterrada no solo: a geração corrente se apressa para gastar a dádiva, com prejuízo das gerações futuras, que ficam a ver navios (e às vezes precisam pagar pela farra gerada pelo excesso de otimismo da geração corrente).

Claro, na Noruega a descoberta de petróleo trouxe benefícios para a sociedade, dada a maturidade institucional daquele país, que possibilitou o uso racional da nova riqueza sem causar danos à coesão da polity. Mas em Serra Leo e na Nigéria, diamantes e petróleo estão mais para dádiva do diabo do que de Deus.

O Brasil é institucionalmente mais desenvolvido que Serra Leo, mas menos que a Noruega. Portanto, é difícil saber se o petróleo do pré-sal fará mais bem que mal a essa altura. Mas o leitor mais atento pode reclamar que estou colocando o carro à frente dos bois, pois o pré-sal ainda é só uma possibilidade. De fato, se o governo seguir planejando matar os incentivos privados à exploração, como sinalizou nesses dias com seu plano a la anos 50, não precisaremos nem nos preocupar com a Maldição dos Recursos Naturais, pois o petróleo dificilmente jorrará.

ps. Sobre esse tema, deixo aqui uma recomendação de leitura que me foi sugerida pelo Gabriel Madeira, da USP (http://www.res.org.uk/economic/freearticles/january06.pdf).

4 comentários:

  1. "O primeiro, e a meu ver menos importante, é o do câmbio: mais petróleo fluindo do chão gera expressivo aumento da entrada de dólares no país, apreciação cambial e, consequentemente, perda de competitividade no setor de bens comercializáveis."

    Acho que depende. Caso o país não tenha industria de bens comercializáveis o efeito do câmbio apreciado pode ser benéfico, uma vez que a importação de bens de capital fica mais barata (sem entrar em questões como o déficit na Balança de Pagamentos). No meu entender boa parte da maldição reside no fato de que estes países costumam ter políticas fiscais frouxas, com impactos sobre o crescimento futuro.

    Marcelo

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  2. Sim, esse fator que voce menciona é importante e constitui um dos motivos que me levam a por menos peso na apreciação cambial.

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  3. Concordo plenamente com a sua opinião referente à nossa mais recente descoberta. Apesar de ainda não demonstrar sinais da tão famosa "lei holandesa", caso o país não utilize bem os fundos advindos do petróleo, o efeito pode ser problemático para o futuro. Para mim, uma saída deste cenário seria investir boa parte da renda gerada em outras regiões do planeta, como fazem vários países exportadores do líquido preto. Isso, como todos nós sabemos, dificilmente occorerá em um país onde os interesses individuais parecem falar BEM mais alto que os interesses nacionais.
    Além disso, como o senhor mesmo destacou, o novo marco regulatório anunciado pelo Presidente da República parece ser uma volta aos anos Geisel e à crença que burocratas em Brasília sabem mais sobre petróleo que empresas/técnicos do assunto. Enfim, se depender da iniciativa privada, o petróleo continuará bem abaixo dos nossos pés. Pra mim tudo bem, o maior problema mesmo será onde enfiar a cara do Lula depois de tantas promessas feitas! =/

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  4. Com relação ao Pré-sal corremos dois riscos:

    1 - Se o financiamento do projeto for via Tesouro, ou alguma forma mágica de capitalização do Petrobrás, o impacto sobre a dívida pública poderá ser razoável;
    2 - Caso o "funding" seja externo poderemos apresentar sintomas da tal doença holandesa, mesmo antes de produzir petróleo.

    A conferir.

    Marcelo

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